Horizonte refletido

XVII Bienal de Cerveira, Portugal. (2013)
 

A partir do conceito geral proposto pela direção artística da 17ª Bienal de Cerveira iniciou-se o processo curatorial,  que já tinha como base natural a relação histórica entre Brasil e Portugal a partir de aspectos contemporâneos.

“Arte: crise e transformação”. Aspectos que despertaram a função politico e poética da arte, como elemento de interferência social,  que age diretamente no individuo, colocando-o diante de aspectos comuns mas com novos significados, questionando dogmas e paradigmas.

A partir daí ficou evidente a ideia de realizar um projeto de site specific. Buscar um diálogo direto e impactante com público, por meio da utilização de recursos poéticos e materiais do próprio local e das permeabilidades culturais entre os dois países. Uma intervenção especialmente criada para Cerveira e para Portugal, considerando sua cultura, a história, o entorno e a arquitetura do espaço expositivo.

Um espécie de retribuição, de retorno, de reflexo. Reflexo no sentido literal, mas também ampliado pela delicada e quase imperceptível relação da imagem refletida com o tempo não linear, onde o que se vê no presente, é o passado refletido no futuro da visão, devido aos instantes e intervalos do que se reflete e do que se enxerga. Uma ilusão real.

Daí surgiu o pensamento de trabalhar com um único artista, no caso o carioca Marcos Chaves, um artista único. Não somente pela funcionalidade nestes tipos de projeto, onde envolver mais de um artista significa criar mais de um projeto. A escolha individual passa também pela relação conceitual da Bienal, onde a crise é transformada pela arte, num processo alquímico, pelo “toque” do artista.

Marcos Chaves transita livremente entre a fotografia, instalações, objetos, vídeos, desenhos, palavras e sons realizando uma obra que “faz deslocamentos imprevisíveis”, com muito humor e inteligência.   Sua expoente trajetória no circuito das artes visuais, a solidez e a potência de seus trabalhos, além da realização conjunta de um projeto de site specific em 2011,  onde elementos das culturas europeias e portuguesas estavam presentes,  foram determinantes para sua seleção. Com isso surgiu a mirada do artista, o horizonte, a profundidade do seu olhar, a vista de Marcos Chaves.

A alquimia da transformação e o poder de controle do espaço e do tempo, função e possibilidade das artes, mais clara no cinema, menos evidente na música, contudo presente em todas as expressões artísticas, são deslocamentos necessários nos tempos de crise, para que se possam encontrar novos caminhos e soluções.

Horizonte Refletido

Apropriação, intervenção, imaginação e humor, características presentes na obra de Marcos Chaves, também estão impressos na proposta curatorial de Horizonte Refletido – site specific criado pelo artista para a 17ª Bienal de Cerveira. Trata-se do segundo ato de uma provável trilogia poética, surrealista, afro-barroca, sonora e atemporal iniciada em solos baianos,  na cidade de Salvador, capital do Brasil no período colonial.

Mais precisamente, o primeiro ato intitulado “Evento”,  aconteceu no Palácio da Aclamação. Edificação de estilo neoclássico, decorada com belos afrescos, guirlandas, laços e medalhões tipicamente portugueses.  Antiga casa de governadores e atual museu, possui um acervo com móveis de estilos José e Luís XV, além de tapetes persas, pinturas de artistas europeus e brasileiros do final do século XIX e começo do século XX e objetos de porcelana, prata, bronze e cristal.

“Evento” utilizou os espaços, móveis e a decoração do próprio museu e a ação do elemento vento para criar instalações de grande potência visual,  fruto de uma catarse artística paradoxalmente precisa. Cadeiras, mesas, cortinas, camas, vasos, taças e talheres foram suspensos, espalhados, derrubados e poeticamente devastados pelas mãos cuidadosas e pelo olhar apurado do artista.

A memória de Evento está presente em Horizonte Refletido.  A sensação metafísica é que foi o mesmo vento que está transportando tudo de volta à Portugal. Um retorno necessário,  após ser re-significado,  tradições estéticas, culturais e funcionais. Ações no presente que remexem o passado mas que só irão acontecer de fato no futuro.

Horizonte Refletido apropria-se de Evento. Marcos Chaves apropria-se dele mesmo e o curador de sua outra curadoria.

A foto do site specific de “Evento” que integra a mostra atual, resgata uma cena que traz consigo a lembrança de uma situação que na realidade não aconteceu. Um registro de um passado, que é anterior a sua própria existência, mas que ocorreu apenas pela ação do artista, e não pela situação em si, que poderia inclusive ser em um outro momento, ainda mais longínquo. A imagem por sua vez,  provoca em quem vê uma nova realidade, que passa a se formar na imaginação de cada um tornando-se a partir daí real e existente novamente.

O retrato é o ponto de partida poético e visual da instalação proposta em Horizonte Refletido.  O detalhe sútil presente na imagem caótica de grande devastação da sala de banquetes.  O copo de cristal vermelho, caído no chão, é amplificado no ambiente branco e livre da Magic Box.

Um cubo branco, obra arquitetônica e artística– espaço/expressão considerado o local ideal para a exposição clássicas de artes plásticas. Contudo, “a liberdade é branca” e o local torna-se um espaço livre para a imaginação e a criação artística. A instalação é fruto de uma memória livre de passado, mas que está presente e poderá num instante acontecer ou já ter acontecido.

Pedaços de cristal vermelho quebrados pelo chão, o vinho tinto na parede, que antes poderia estar nos copos, agora utilizado como tinta, se torna “vinho-tinta”. Derramado como pintura na performance artística, como sangue nas lutas ou como batom nas putas. O som amplia a lembrança do quê poderia ter acontecido ali mesmo, no dia de ontem, ou até no local da foto, num tempo distante e remoto. O caos aparente é novamente transformado pela arte.

Uma cena poética de um passado que na verdade não aconteceu, mas que de verdade aconteceu.

Daniel Rangel
Curador

Maio, 2013.