Lugar de sobra

2002
     

O trabalho começa na rua.

Em 1995, o artista, a partir da observação de uma considerável quantidade de banquinhos pelas calçadas da cidade, utilizados por bicheiros, porteiros, vendedores ambulantes, seguranças privados, etc, começa a colecioná-los. A negociação faz parte do início do trabalho. Ela é feita pela troca por bancos novos de madeira ou compra direta dos proprietários. O valor depende da conversa. a obra é organizada como uma série, mas cada peça tem sua individuação preservada. Eles portam a memória não só dos consertos espontâneos ao longo do tempo, de inscrições particulares, mas também do corpo do dono. É um objeto vivo. Cada um tem suas personalidades e arquiteturas peculiares.

No título do trabalho já está inscrito o paradoxo da exclusão e da fartura. Lugar de Sobra inclui a obra, o público e o resto do mundo no mesmo lugar, por isso ele é de sobra, é amplo. É de sobra também porque são vários e ocupam o espaço da cidade. E é de sobra porque os objetos são sobras do mundo, o resto. É o lugar do refugo, da adversidade e da carência, mas é também, paradoxalmente, o lugar da fartura. Falta e sobra ao mesmo tempo.

O espaço expositivo vai definir a maneira de como serão organizados. Eles podem ser sentados.

Arte Futura e Companhia (Brasília, 2002)
Galeria Nara Roesler (Rio de Janeiro, 2002)
MAM-Rio (2021)
MAR (2014)
Paço Imperial (Rio de Janeiro, 2002)

Lugar de Sobra

Ligia Canongia

Marcos Chaves surpreende significados e valores imersos nas coisas vulgares, dissimulados no hábito ou na convenção. Faz deslocamentos imprevisíveis e produz assemblages em tom de paródia, destilando aí a sua aguda observação sobre o mundo, da tecnologia ao lixo. As coisas de que se apropria, em sua maioria, são produtos do consumo e do imaginário popular. Observa não apenas a estética que é dirigida às grandes massas e por elas absorvida, como as manifestações que partem naturalmente do povo, do meio urbano e do comércio do mau gosto. São esses produtos que, paradoxalmente, acentuam a força do comentário “culto” da arte e ajudam a enfatizar o tom jocoso de suas associações. O humor entra aí como uma lâmina fina a satirizar o senso comum, a uniformidade e a falta de juízo crítico. O humor intervém sobre o significado original do objeto e enxerta outro, por um movimento imprevisto, um desconcerto, quase piada. A acidez de seu humor opõe-se, na verdade, à banalidade do objeto, dando-lhe, ao contrário, originalidade. De um lado, temos uma operação que escarnece da vulgaridade e do consumo, através da apropriação dos próprios produtos que os fomentam, e, de outro, uma operação que os reintegra ao mundo do “refinamento” intelectual da arte. O trabalho sustenta-se na ambigüidade, associando movimentos opostos, fundindo dicotomias, apontando sentidos multidirecionais.

Desestetizado e antiformal, por excelência, o trabalho de Marcos Chaves rejeita a “aura” da obra de arte e contamina sua “pureza” com as coisas da vida comum, substituindo o belo pela inteligência.

Lugar de Sobra, concebido em 1995, pensa a idéia de “série”, como muitos de seus trabalhos, voltando à discussão da indústria e dos processos de produção mecânica. Confronta, de cara, o Brasil industrial e progressista ao Brasil miserável, propondo uma “série” de objetos mambembes, de fatura manual e precária, às vias de se indeterminarem enquanto forma. Uma série que se auto-anula como idéia mesma de serialidade. Em Lugar de Sobra não há uniformidade, repetição, programa, planejamento, formalidade. Cada objeto preserva um mínimo de individuação. E, de novo, o material é desestetizado ao extremo. São peças de mobiliário, banquinhos usados, velhos. Não se trata mais de um produto industrial, mas de banquinhos “arranjados” à mão, obra do “jeitinho” popular e criativo, que produz utensílios com refugos, com sobras. Mas aqui o artesanato não se eleva à categoria de produção bem acabada, nem empresta ao objeto uma “estética”. O objeto acaba por possuir o mesmo espírito do assemblage dadaísta: uma forma dissociada, feita por acumulação de pedaços, por justaposição de partes díspares, uma antiforma.

Cada banquinho mantém uma individuação mínima porque, de fato, são diferentes entre si, mas a precariedade de sua construção, o aspecto surrado e a indefinição de seus contornos é tamanha que eles não retém nosso olhar, não realçam qualidades.

Outro dado importante é que os banquinhos são colocados em exposição e podem ser utilizados pelos espectadores para se sentar. Eles substituem os bancos que existem nos museus para que o público contemple a obra. Só que eles são “a obra”, e o objeto da contemplação falta. O mundo é esse objeto. Lugar de Sobra inclui a obra, o público e o resto do mundo no mesmo lugar, por isso ele é de sobra, é amplo. É de sobra também porque são muitos os banquinhos e ocupam grande espaço. E é de sobra porque os objetos são sobras do mundo, o resto. É o lugar do refugo, do lixo, da pobreza e da carência, mas é também, paradoxalmente, o lugar da fartura. Falta e sobra ao mesmo tempo.